Um relatório divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública lança luz sobre uma crise alarmante: a falta de policiais que prejudica a proteção da Amazônia e a segurança pública em todo o Brasil.
Inicialmente, o relatório revela uma falta assombrosa de mais de 47.000 policiais na Amazônia, somados todos os estados da Amazônia Legal. A conta é baseada em informações dos próprios estados, sobre os efetivos previstos em 2022 e existentes em 2023.
De forma ainda mais específica, o Amapá, o estado brasileiro com a maior taxa de homicídios, opera com menos da metade do contingente necessário de PMs, situando-se em meros 39,2% do ideal.
Ademais, Rondônia se destaca negativamente com uma redução de 30,6% no número de policiais civis na última década, a maior do país.
Também o Amazonas apresenta uma situação de vulnerabilidade extrema, com um policial militar para cada 189 km² de território, um policial civil para cada 835 km², e um bombeiro militar para cada 1403 km². Em contraste, o Mato Grosso lidera em termos de cedência de policiais militares, com 11,4% do seu efetivo deslocado.
O relatório do FBSP fornece um panorama da realidade policial no Brasil, destacando que dos 152.769 policiais civis necessários segundo entidades da área apenas 95.908 estão ativos.
Dados os altíssimos índices de violência no Brasil, a situação das polícias militares também é drástica, com uma discrepância entre os 584.462 policiais esperados e os 404.871 realmente na ativa em 2023.
A redução de efetivos se tornou mais acentuada na última década, com uma queda de 2% para policiais civis e de 6,8% para militares.
A escassez de força policial é um destaque na maioria dos estados da Região Norte do Brasil, onde a falta de policiais prejudica a proteção de toda a Amazônia. À exceção de Tocantins e Roraima, somando todos os outros estados faltam mais de 40.000 PMs na Amazônia.
Não podemos esquecer que a Polícia Militar tem um papel histórico na ocupação e desenvolvimento sobretudo dos estados mais jovens da região.
Além disso, dadas as dimensões territoriais gigantescas na Amazônia, o policiamento ostensivo precisa cobrir áreas extremamente vulneráveis a todo tipo de criminalidade.
O estado amazônico com a maior necessidade percentual de policiais militares é o Amapá, seguido pelo Acre e Mato Grosso. O Amapá não possui sequer metade dos PMs previstos para policiar o estado – apenas 39,2% do esperado.
Vale lembrar que o Amapá é, atualmente, o estado com a maior taxa de homicídios do país – 50,6 mortes por 100 mil habitantes (Anuário 17 – MVI FBSP).
O Pará, o Amazonas e Rondônia também estão entre aqueles estados cujo número de PMs na ativa não chega a 60% do necessário.
Não é difícil de conceber como a falta de policiais prejudica a proteção da Amazônia e de suas populações. Mesmo que os problema seja menor em alguns estados da região, a esscassez de força policial compromete a segurança em toda a Amazônia dado que, em média, a violência letal na região é 45% maior do que no restante do país.
Amapá, Amazonas, Tocantins e Rondônia reduziram a quantidade de policiais militares na ativa entre 2013 e 2023 acima da média nacional. A maior redução foi no Amapá, com 16%.
Já no caso da Polícia Civil, Rondônia foi o estado campeão nacional de redução de quantidade de policiais nos últimos dez anos: 30,6%. Essa informação é muito preocupante considerando que em Rondônia, no mesmo período, as taxas de homicídio cresceram 20% e as taxas de roubos cresceram 40%.
Um dos pontos mais chocantes do relatório do FBSP é a relação entre a quantidade de policiais e extensão territorial para ser policiada.
Em princípio, é difícil comparar a razão “policial por km2” entre os estados amazônicos e os demais estados do país.
Afinal, os estados amazônicos são menos populosos e vastas porções de seus territórios não contam com nenhuma infraestrutura político-administrativa.
Mas, esse dado específico não deixa de ter o valor de provocar uma reflexão muito importante e urgente. A falta de policiais prejudica o controle do território amazônico. E esse é um problema essencial para a Amazônia, assim como para todo o Brasil e o mundo. Não basta alcançar taxas de policiais por habitantes acima da média nacional, como é o caso de Rondônia, Acre, Roraima e Amapá.
Por certo, segurança pública não se faz apenas nas cidades, as quais são, tecnicamente falando, apenas as sedes dos municípios.
A segurança pública também é necessária nas zonas rurais, bem como em áreas de proteção ambiental, fronteiras, territórios indígenas, quilombos, rios, lagos e florestas. Ao contrário do restante do país, a enorme maioria dos municípios amazônicos possui um território muitas vezes maior fora de suas sedes.
Só para ilustrar, no Brasil, há em média, 1 policial militar a cada 21 km2 de extensão territorial.
Esse mesmo único policial é responsável, no Amazonas, em média por 189 km2. No caso de um policial civil, esse valor sobe para 835 km2 e de um bombeiro militar a extensão atinge 1403 km2.
É praticamente impossível fiscalizar, reprimir, coibir e investigar crimes ambientais com tão pouco pessoal.
Mais difícil ainda é impedir ou investigar crimes sexuais contra crianças e adolescentes, tráfico de pessoas e drogas, contrabando e assassinato em pequenos distritos e vilas distantes da sede do município.
Outro número chama bastante atenção no levantamento feito pelo FBSP. Surpreendentemente, a quantidade de policiais cedidos para órgãos fora das secretarias de segurança pública dos estados é expressiva. Geralmente, esses policiais vão trabalhar em tribunais, ministérios públicos, órgãos legislativos e executivos diversos.
No Brasil, em média, 2,8% dos policiais militares estão cedidos para outros órgãos. Especificamente na Amazônia, esse número quase dobra: em média, 5,1% dos PM estão cedidos para outras unidades. Além disso, os maiores destaques negativos na Amazônia são o Mato Grosso, Pará e Rondônia. Nesses estados, a falta de policiais prejudica o combate ao crime nas zonas mais distantes das cidades mais populosas.
Por outro lado, considerando o total de policiais, o Mato Grosso é o estado que cedeu o maior percentual de suas forças, em todo o país, em 2022, atingindo 11,4%. Posteriormente, Rondônia é o 4º colocado nacional, com 7,7% de seus efetivos totais deslocados para outros órgãos.
De maneira ainda mais impressionante, incríveis 19% de todos os oficiais da PM de Mato Grosso estavam fora da secretaria de segurança pública do estado em 2022. Em Rondônia, esse número chegou a 14% – no Pará, ficou em 15%. No caso dos praças, o Mato Grosso chegou a ceder mais de 10% de seus militares, e Rondônia, 7,55%.
Não bastassem os problemas apontados um deles chama a atenção por sua natureza esdrúxula: a relação entre soldados, cabos e sargentos nas polícias militares.
Como alerta o relatório do FBSP, não deveria haver mais policiais militares (mesmo que praças) em funções de comando do que comandados.
Todavia, em 9 estados brasileiros há mais sargentos do que soldados nas polícias militares. A unidade da Federação onde essa distorção é maior é o Distrito Federal, onde existem quase 2 vezes mais sargentos do que cabos e soldados.
Entre esses 9 estados, 6 são amazônicos: Acre, Tocantins, Amazonas, Rondônia e Mato Grosso.
Entre as causas para haver mais sargentos do que soldados e cabos estão a falta de planejamento orçamentário, que repercute na falta de ingresso de novos servidores, e dificuldades de promoção na carreira. Por consequência, manter unidades de patrulhamento e combate em número suficiente nas melhores condições é bem mais difícil.
Por fim, o FBSP informa ainda que Rondônia tem a mais baixa média salarial de policiais militares dentre os estados amazônicos, seguido de perto pelo Acre. Enquanto a média nacional é de R$ 6.139,07, em Rondônia esse valor é de R$ 4.940,51. Isso deixa Rondônia na 5ª pior colocação entre os salários das tropas de todo o país. Rondônia tem ainda a 2ª pior remuneração média salarial (líquida) da policía civil em todo o país, e o Acre a pior na categoria remuneração média bruta.
Em todo o país a retórica de governos endividados com as contas públicas indica a necessidade de diminuição de gastos com pessoal e uso de novas tecnologias para aperfeiçoar os serviços oferecidos à população.
Contudo, para um país em permanente crise de segurança pública a falta de policiais revela uma verdade assustadora: com ou sem gestão eficiente, não há quem faça o trabalho.
De modo geral, os indicadores de violência e criminalidade no Brasil são mais elevados que a média global.
A Região Norte do Brasil, onde estão 7 dos 9 estados amazônicos, é a região mais vulnerável do país. Ali os indicadores de violência e de desenvolvimento são os piores, e a ameaça à vida e aos bens das pessoas é menos combatido.
No caso da segurança pública, sem pessoal treinado, recursos adequados e sem o suporte de boas condições para o trabalho não é possível pacificação social.
Existe um discurso muito repetido sobre a Amazônia apontando certa “ausência do estado” em sua defesa. Em síntese, por pura falta de recursos, essa “ausência” tornaria quase impossível a defesa da soberania em seu território.
Com base nessa “tese”, o estado seria realmente incapaz de fazer valer a Constituição e a defesa da dignidade das pessoas ameaçadas pelo crime e pela violência.
Mas, a crença nesse discurso muito repetido da “ausência do estado” na Amazônia acoberta uma verdade relativamente fácil de ser compreendida: a sobreposição de ilegalidades dominantes na Amazônia implica poder público e interesses privados de tal modo que expor os bens públicos e a sociedade ao perigo constante é uma forma rotineira de administrar as realidades locais.
Certamente, a “ausência de Estado” na Amazônia não é uma realidade cruel e irremediável. Ela é um projeto político bem-sucedido, sustentado governo após governo. Somente por esse caminho é possível manter os lucrativos e quase inesgotáveis negócios da grilagem de terras públicas, extração ilegal de madeira, produção de carne animal e mineração irregular em áreas de proteção ambiental, controle de rotas de tráfico internacional de cocaína e muitos outros.
Em conclusão, na Amazônia, a fragilização da soberania por meio da exposição à violência é a porta de acesso para sua sobrevivência político-econômica como ela vem sendo projetada e executada há décadas. Talvez, há séculos! A fraca infraestrutura de segurança pública é apenas o braço “não-armado” mais visível dessa estratégia.