Por Rodolfo Jacarandá
Desde 2017 o tráfico de drogas na Amazônia Legal brasileira aumentou vertiginosamente. Em 2022, quando o assunto é a cocaína na Amazônia brasileira os valores antingiram recordes históricos em várias regiões.
Um consenso se estabeleceu em torno da tese segundo a qual o Rio Solimões seria a rota de maior volume de transporte de cocaína para e através da Amazônia brasileira – nesse caso, de cocaína proveniente do Peru e da Colômbia.
Essa cocaína abasteceria o mercado interno no Amazonas, Pará e estados do Nordeste, bem como parte dela seria exportada para outros países.
O primeiro argumento importante a favor dessa tese é o volume total de apreensões de cocaína pela Polícia Federal (PF) no Amazonas, ao longo dos últimos 27 anos. Somando um total de mais de 33.313 quilos entre 1995 e 2021 o Amazonas é o 5º estado do país em apreensões da droga pela PF.
Outro argumento evoca o cenário de disputas sangrentas entre organizações criminosas pelo controle do tráfico de cocaína nas grandes capitais no Norte do país, como Manaus/AM e Belém/PA.
Essas disputas opuseram grupos locais, como a Família do Norte, do Amazonas, e facções criminais do Sudeste, como o Primeiro Comando da Capital, paulista, em conflitos que fizeram subir demais as taxas de homicídios em nessas cidades em 2017 e 2018.
Mas a tese de que o Rio Solimões é a principal rota de entrada de cocaína na Amazônia pode estar desviando as atenções de rotas tão ou mais movimentadas de entrada de cocaína no Brasil, no sul da Amazônia.
Neste texto vou mostrar que o volume de cocaína apreendida nos estados do sul Amazônico – Acre, Rondônia e norte do Mato Grosso – sempre foi muito grande e está crescendo vertiginosamente em 2022.
O tráfico de cocaína é um gigantesco mercado em crescimento. A ONU estima que em 2020 tenham sido produzidas 1.982 toneladas de cocaína pura – cuja venda poderia ultrapassar 330 bilhões de dólares, mais de 1 trilhão e 500 milhões de reais.
Por outro lado, as apreensões de cocaína estão crescendo num ritmo ainda maior. Em 2020 foram apreendidas 1.424 toneladas da droga. Colômbia, Equador e Brasil respondem por 53% de todas as apreensões globais. O aumento das apreensões pode estar pressionando os preços no mercado global.
Embora o preço médio de 1 quilo de cocaína estimado pelas polícias federais do Brasil esteja em R$ 180.000,00, um levantamento do Centro de Excelência para a Redução de Oferta de Drogas Ilícitas encontrou referências a valores que podem chegar a quase R$ 300.000,00.
Outro levantamento, do Escritório de Crimes e Drogas da Organização das Nações Unidas (UNODC), apontou que 1 quilo de cocaína pode ser vendido na Austrália por mais de US$ 170.000,00, ou mais de R$ 800.000,00. No Reino Unido, no começo dos anos 2000, 1 grama de cocaína nas ruas chegou a custar 100,00 euros, cerca de R$ 550,00 em valores atuais.
Vou apresentar e discutir apenas os dados de apreensões de cocaína pelas instituições federais, por estarem mais bem disponíveis para todos os estados.
3 países andinos plantam em larga escala as folhas de coca e são considerados os maiores produtores de cocaína do mundo: Colômbia, Peru e Bolívia.
A oferta de cocaína no mercado global de drogas cresceu muito a partir de 2016, especialmente por causa do aumento da produção na Colômbia – país que responde por mais de 60% da oferta de cocaína no mundo.
As razões para esse aumento variam. De 2000 a 2013 o governo norte-americano financiou ações de combate ao plantio de coca na Colômbia.
Entre essas ações estavam os voos constantes para borrifar veneno nas plantações e os incentivos econômicos para que pequenos produtores substituíssem o plantio de coca por outras culturas.
Com o fim dessas ações o plantio de coca se espalhou pelo território colombiano e voltou a crescer, depois de estar em queda de 2007 a 2013.
A fragmentação do controle sobre essas regiões tornou ainda mais difícil para o governo colombiano impedir que a produção de cocaína irrigasse o mercado internacional com volumes cada vez maiores, ano a ano.
Apesar de ligeiras quedas entre 2018 e 2020, a Colômbia produziu cerca de 1.228 toneladas de cocaína pura em 2020, 61% do total global. Dos 234.000 hectares plantados com os arbustos de coca, 143.000 deles ficam na Colômbia.
No Peru e na Bolívia os últimos anos foram de crescimento tanto no cultivo quando na produção de cocaína. Na Bolívia, onde o plantio é autorizado em algumas regiões, o cultivo chegou aos 30.000 hectares e continua crescendo desde então.
Segundo o UNODC, o Brasil é o país mais citado em apreensões de cocaína no mundo, fora das Américas – onde o país fica em segundo lugar, atrás da Colômbia.
O Brasil também é a origem da maior parte da cocaína apreendida nos países da América do Sul, fora da Colômbia, Bolívia e Peru.
A enorme extensão territorial brasileira permite a diversificação das rotas de transporte e a infraestrutura de portos e aeroportos viabiliza o envio da droga para outros continentes.
A Colômbia é o maior produtor mundial de cocaína e envia quase toda sua produção para os Estados Unidos, Canadá e Europa por portos no Atlântico e Pacífico.
Para fazer a droga chegar ao Brasil é necessário atravessar a Amazônia colombiana. As regiões de fronteira com o Brasil são as menos produtivas do país – Meta, Guaviare, Vaupés, Amazonas e Guainía são regiões que respondem por apenas 0,11% do total de plantio de coca na Colômbia. A cocaína colombiana que entra no Amazonas brasileiro atravessa longas distâncias e territórios tomados por grande variedade de grupos criminosos atuando no extrativismo e no garimpo ilegal.
É de se supor, portanto, que a maior parte da droga que chega ao Brasil – para consumo interno ou exportação – vem do Peru e da Bolívia. O Peru possui um extenso litoral com acesso ao Pacífico, logo, os traficantes dispõem de maior variedade de pontos de envio da droga para o exterior. No caso da Bolívia, a principal opção é enviar a droga através das extensas fronteiras com o Brasil, restando ainda o Paraguai e a Argentina como opção.
Diferentemente do que ocorre na Colômbia, onde as regiões de fronteira com o Brasil são as menos produtivas, na Bolívia a região que recebe a maior produção de folha de coca no país é Santa Cruz, que faz fronteiras com Rondônia e Mato Grosso – o governo boliviano estima que 40% de toda a produção do país seja destinada a Santa Cruz, embora as regiões de maior cultivo sejam Yungas de La Paz e Trópico de Cochabamba.
Além disso, o estado do Acre possui uma tríplice fronteira com Peru e Bolívia, por onde é possível acessar a rodovia federal BR-364, principal artéria de escoamento rápido de cocaína para o sul e, acessando a partir dela diferentes rodovias estaduais e federais, também para o nordeste do país.
Para obter números confiáveis sobre o tráfico de cocaína no Brasil é necessário evitar o erro de somar os valores em quilos de apreensões por diferentes instituições.
Tendo isso em vista, as grandes apreensões de cocaína ocorrem, geralmente, em portos e aeroportos, majoritariamente sob a fiscalização da Polícia Federal; e em estradas, majoritariamente sob a fiscalização da Polícia Rodoviária Federal, quando se trata de estradas que atravessam mais de um estado.
A cocaína apreendida pode estar na forma básica (pasta e merla, com maior quantidade de solventes contaminantes); em pó (cloridrato de cocaína); ou em pedras, conhecidas como crack.
Entre 1995 e 2021 o total apreendido pela Polícia Federal no Brasil ultrapassou os 770.000 quilos.
Com as restrições de circulação impostas pela Covid-19 houve uma diminuição nas apreensões de cocaína pela Polícia Federal, em 2020. Mas, já em 2021 o volume voltou a aumentar.
No caso específico das apreensões em portos, o ano de 2019 foi de recordes. Com a pandemia, contudo, houve uma queda sensível no volume de apreensões.
Os principais pontos de saída da cocaína que atravessa o Brasil são os portos de Santos/SP (43,3% do total apreendido em 2020), Paranaguá/PR% (15,3%) e Salvador/BA (15,5%). É mais fácil transportar grandes quantidades de cocaína em contêineres, o que explica a preferência pelo transporte marítimo.
Mas, os portos também são menos difíceis de fiscalizar e com os investimentos em scanners e outros equipamentos o número e o volume de apreensões de cocaína aumentou significativamente nos portos brasileiros nos últimos anos.
Para fugir da fiscalização, os traficantes precisaram diversificar o uso de pontos de saída.
Uma solução imediata foi utilizar mais aeroportos. O pico de apreensões de cocaína pela Polícia Federal antes da pandemia foi em 2017, com 2.565,41. Não coincidentemente, 2017 foi o ano mais violento em números de homicídios no Brasil.
Com a melhoria da infraestrutura dos aeroportos brasileiros desde as obras para a Copa do Mundo de 2014, praticamente todos os grandes aeroportos do nordeste e do norte do país foram internacionalizados e passaram a ser usados com mais frequência pelos traficantes.
O aumento da violência nas capitais do norte e nordeste desde 2017 não refletem apenas a disputa entre facções criminosas pelos mercados locais de drogas – esse aumento também aponta para a luta pelo controle dos pontos de envio de drogas para o exterior.
Em 2019 o aeroporto de Manaus (AM) já era o segundo aeroporto do Brasil em apreensões de cocaína – atrás apenas de Guarulhos (SP). Naquele ano as apreensões em Manaus (AM), em quilos, quase chegaram a ser maiores do que as apreensões feitas em Recife (PE), Salvador (BA) e Brasília (DF), juntos. O aeroporto de Porto Velho (RO) vinha na sequência, em 7º lugar, logo atrás do de Corumbá (MS).
De 2009 a 2020, o aeroporto de Manaus somou 403,48 quilos de cocaína apreendidos pela Polícia Federal – atrás apenas de Guarulhos/SP, Galeão (RJ) e Brasília (DF). Apesar de a capital do Amazonas ocupar uma posição de destaque nesse ranking o volume total de droga apreendida é muito baixo, comparado ao montante que circula por portos e estradas brasileiras.
A rota de envio mais movimentada e bem conhecida das polícias brasileiras utilizava o Paraguai como intermediário – a chamada “Rota Caipira”.
Mas o uso das fronteiras na extensão territorial que vai do norte do estado do Acre, na fronteira com o Peru, passando por Rondônia até o sul do Mato Grosso, por toda a fronteira com a Bolívia, é bastante antigo.
É difícil estimar com alguma precisão o volume anual de entrada de cocaína por qualquer rota. O único número confiável em estudos sobre tráfico de drogas é o de apreensões. Mesmo assim, nem sempre é possível saber se a droga apreendida em um estado entrou no país pelas fronteiras daquele estado; ou se tinha um destino diferente dentro do país; ou se era destinada à exportação.
Mas, desde o início da década de 2010, com a migração do PCC e do CV para o norte do Brasil em busca do controle direto da importação de cocaína o cenário começou a mudar.
As autoridades bolivianas estimam que em 2020 a produção de folha de coca atingiu 29.400 hectares, chegando a uma produção não maior que 53.000 toneladas métricas do produto que é a matéria prima para a fabricação de cocaína.
Com o aumento da produção de cocaína na Bolívia e no Peru e com a retomada da circulação com o arrefecimento da pandemia de Covid-19 as apreensões voltaram a acontecer com mais intensidade, sobretudo nas rotas terrestres do sul da Amazônia.
Os 2 estados do Brasil com o maior volume de apreensões de cocaína em rotas terrestres no Brasil em 2020 e 2021 são Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. No caso do Mato Grosso o volume de mais de 20 toneladas apreendidas chega a ser 2 vezes maior do que o de seu vizinho, segundo colocado no ranking.
A maior parte da cocaína apreendida pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) no Mato Grosso desce para o Sul e Sudeste do Brasil pelas rodovias federais.
Uma parte considerável (mas, difícil de estimar) dessa droga chega ao Mato Grosso proveniente do Acre e de Rondônia, pela BR-364 – a principal artéria de comunicação do sudoeste amazônico com o restante do país.
Em 2021, segundo números da Polícia Federal, o estado de Rondônia obteve seu recorde histórico de apreensões de cocaína – foram 2.532,40 quilos. A Polícia Rodoviária Federal registrou no mesmo período 1.408 quilos apreendidos.
Em 2022, contudo, até a primeira metade do mês de agosto as apreensões em Rondônia já ultrapassam 7.000 quilos, quase 2 vezes mais do que o recorde de 2021, em apenas 7 meses. A grande maioria dessas apreensões ocorreu em estradas do estado.
Em duas dessas apreensões o montante ultrapassou 1.000 quilos. Na primeira delas, na cidade de Alta Floresta do Oeste/RO, em 14 de fevereiro de 2022, foram capturados 1.466 quilos de cocaína.
Na segunda, em São Miguel do Guaporé/RO, no dia 5 de abril de 2022, foram 1.700 quilos.
As duas cidades estão localizadas no oeste do estado, mais próximas da fronteira com a Bolívia. Os traficantes atravessam o Rio Guaporé e cruzam a fronteira usando estradas locais para chegar à BR-364, com o objetivo de seguir para dois destinos prioritários: em direção ao sul, pela BR-364 e pela BR-174, atravessando o Mato Grosso; ou, em direção ao leste, o que pode ser feito via Machadinho do Oeste, em Rondônia, pela RO-205, até Colniza/MT, pela MT-206, podendo seguir de lá para o sul do Pará, em direção a Belém ou a outras capitais do nordeste.
Em muitos casos, a travessia é feita em pequenos aviões que jogam a droga em fardos, em pontos onde são recolhidas por traficantes brasileiros.
Mapa das rotas – Google Maps
Por causa dessas duas grandes apreensões alguns especialistas já estão se referindo ao que seria uma “nova rota do tráfico de cocaína”.
Mas, a rota não é nova – talvez, esteja apenas sendo utilizada com mais frequência em razão da exploração desse caminho por organizações criminosas do Sudeste do Brasil.
A entrada de cocaína no Brasil pelas fronteiras com o Acre, Rondônia e Mato Grosso, em direção ao sul e sudeste do Brasil, sempre foi grande. Somente com os dados da Polícia Federal, na série histórica de 1995 a 2021, é possível perceber que o volume da droga já esteve bem alto durante épocas diferentes.
O recorde de apreensões pela PF em Rondônia era de 2.181,95 quilos em 2007. Em 2013, no Acre, a PF apreendeu 1.351.74 quilos de cocaína, valor superado apenas em 2020 e 2021. No caso do Mato Grosso, a PF atingiu picos de mais de 6 toneladas em apreensões em 2013 e em 2019.
No total, no Acre, em Rondônia e no Mato Grosso (estados de fronteira, cortados pela BR-364), de 1995 a 2021, a PF apreendeu 128.408 quilos de cocaína.
No total, no mesmo período, a PF apreendeu no Amazonas e no Pará 60.594,53 quilos de cocaína.
Além disso, quando somamos os dados de apreensões de cocaína somente em estradas, apenas em 2020 e 2021, a diferença entre os dados de Acre-Rondônia-Mato Grosso (23.856 quilos) em relação ao Amazonas-Pará é muito grande (1.763 quilos).
As estradas parecem ser o elemento-chave para melhor compreensão do uso das rotas de transporte de cocaína na Amazônia.
Embora os rios sejam vias de fácil acesso e pouco fiscalizadas, as estradas permitem maior agilidade, encurtam o tempo do transporte e dão acesso a uma infinidade de vias de fuga e esconderijos, por estradas menores (as chamadas “linhas”) ou mesmo trilhas mais fechadas.
Por fim, apesar de todos os esforços da Polícia Rodoviária Federal, a infraestrutura e os efetivos policiais em campo ainda são muito inferiores ao necessário. Nem o Acre, nem Rondônia ou Mato Grosso contam com efetivos policiais especificamente direcionados para o patrulhamento de suas estradas – polícias rodoviárias estaduais.
Fizemos um levantamento das apreensões de cocaína em 2022 nos estados do Acre e Rondônia, a fim de monitorar a evolução do tráfico no sul da Amazônia.
Para evitar a duplicidade de lançamentos, utilizamos as datas das apreensões informadas na mídia como elemento distintivo de cada uma delas. 66% das apreensões foi feita exclusivamente pela PRF – as outras 34% foram realizadas em cooperação com polícias militares, civis e federal.
Somente em Rondônia estão listadas nesse mapa apreensões que somam mais de 7.400 quilos de cocaína.
Incluímos a cidade de Boca do Acre no Amazonas por que é possível chegar até lá pela B-317 e navegar, pelo Rio Purus, até Lábrea, também no Amazonas, e alcançar a BR-230, principal conexão por terra entre o interior do Amazonas e o Pará.
De toda sorte, o que parece ser um grande diferencial de 2022 é o uso mais intenso e frequente das estradas locais de Rondônia e Acre, com o objetivo de acessar as rodovias federais que conectam o sudoeste amazônico ao restante do país.
Considerando apenas os dados oficiais da PRF, entre janeiro e julho de 2022, Mato Grosso, Rondônia e Mato Grosso do Sul lideram o volume de apreensões de cocaína. O aumento de fluxo da droga nessa região do país precisa ser acompanhado mais de perto.
A falta de infraestrutura e de fiscalização tanto nas rodovias federais quanto nas estaduais oferece um cenário perfeito para um deslocamento relativamente seguro de grandes grupos criminosos para essa região.
Afinal, são alguns milhares de quilômetros de fronteiras servidas por estradas que permitem o envio constante de cocaína para os pontos de saída no leste brasileiro. Com tantos espaços para aproveitar, nem é necessário estabelecer hegemonia por meio de uma luta sangrenta sobre uma cidade, um aeroporto ou um porto.
Agradecemos à colaboração do Prof. Ricardo Gilson da Costa
Grupo de Pesquisa GTGA/CNPq
Currículo Lattes
Colaboraram com esta pesquisa:
MATEUS FEITOZA
AYNNE CARMENCITA RAMOS DIAS
GIOVANNA ENES COSTA
ANNA CECILIA ENES COSTA
SOFIA ROMÃO OLIVEIRA
LUÍS EDUARDO DIAS BASTOS
Como citar este texto:
JACARANDÁ, Rodolfo. A cocaína na Amazônia. Criticultura. Porto Velho, 30 de agosto de 2022. Disponível em: https://rodolfojacaranda.com/a-cocaina-na-amazonia/; Acesso em: (coloque aqui a data de seu acesso).